QUANDO DEUS NOS FECHA A PORTA...
Ano de 1974, Revolução dos Cravos, Faculdade de Direito de Lisboa.
As aulas, em período pós-laboral, para os estudantes-trabalhadores, estão aprovadas.
Mas a Faculdade vive, com entusiasmo e fervor, o ambiente pós-revolucionário.
O MRPP, dirigido pelo jovem Durão Barroso, luta encarniçadamente pelo controlo da Escola.
O MIRN, encabeçado pelo jovem Santana Lopes, quer ser ele a mandar.
A UEC, sob a égide do Partido Comunista Português, desenvolve intensas diligências com o mesmo claro objectivo.
Os Catedráticos, apelidados de “fascistas” pelos estudantes “revolucionários”, foram saneados ou, pura e simplesmente, abalaram porta fora.
As aulas de Direito foram, em grande parte, substituídas por inúmeras RGAs, Reuniões Gerais de Alunos, que se prolongam noite fora.
O combativo Durão Barroso, mais tarde Presidente da Comissão Europeia, assume a presidência das reuniões, maximizando os seus naturais dotes de bom tribuno.
O generoso Santana Lopes (mais tarde Presidente de Câmara), geralmente de pé entre os alunos, assume clara oposição, situando-se à direita do espectro político.
Mais tarde, Barroso e Lopes tornam-se grandes amigos e filiam-se ambos no PPD/PSD.
Os estudantes comunistas tentam, por muitos meios, contrariar estes novíssimos movimentos.
Assisti, divertido e interessado, a várias destas reuniões gerais de alunos.
Noutras ocasiões, ia para a sala de leitura e ocupava o tempo no estudo das “sebentas”.
A páginas tantas, fartei-me de tudo aquilo e, em lugar de ir às aulas - que eram raras e tumultuosas – decidi ficar em casa.
Regressei no ano lectivo de 1975, pois observei que, no entretanto, os “ânimos” haviam serenado.
Por outras palavras, o MRPP assumira o controlo da Faculdade de Direito.
Os docentes eram, nalguns casos, Juristas vindos de Coimbra; noutros casos, Advogados ilustres que se ofereceram para o ensino; finalmente, havia “assistentes” recrutados de entre os militantes do MRPP, um dos quais, se não erro, era ainda estudante de liceu.
A par do ensino do Direito dito “reacionário”, havia também o “ensino” do marxismo-leninismo, com leitura obrigatória de Pachukanis e de outros teóricos marxistas.
Na disciplina do Direito Penal, estudava-se apenas a “teoria finalista”, com a consequente rejeição dos teóricos ditos “burgueses”.
A pouco e pouco, a Faculdade foi, porém, voltando ao seu “funcionamento normal”.
Passado o período das “passagens administrativas”, os novos Docentes foram-se tornando cada vez mais exigentes.
O sistema de “avaliação contínua” deixou de ser a única forma de apurar o grau de aprendizagem dos alunos e regressaram os exames formais.
Muito boa gente, habituada ao “facilitismo” implantado pelo MRPP, desistiu.
Alguns, porém, confrontados com os Professores mais exigentes do período pós-laboral, optavam por fazer os seus exames junto dos Docentes do período diurno, aparentemente mais permissivos.
Recordo-me de ser particularmente difícil concluir a cadeira de Direito Administrativo com o Dr. Esteves de Oliveira, docente vindo da Faculdade de Coimbra, competente e exigente.
Rapidamente os Estudantes encontraram saída para o problema:
- Eh pá, vou fazer isto com o Marcelo! – desabafavam.
Dizia-se, na altura, que o Dr. Marcelo, Assistente no período diurno, “passava” os Alunos com mais facilidade.
O Dr. Marcelo, mais tarde Professor Catedrático, notável jornalista, haveria de ser eleito, mais tarde e não obstante estar aposentado da função pública, Presidente da República.
Regressando à minha pessoa, eu lá fui fazendo as cadeiras do Curso de Direito, comparecendo pontualmente às aulas no período pós-laboral, apresentando regularmente os “trabalhos” feitos no seio do “grupo” constituído “ad hoc” e submetendo-me aos exames regulamentares.
A propósito, talvez seja interessante relevar esta pequena curiosidade:
Estando eu a frequentar o 5.º e último ano da licenciatura, aproximou-se de mim um Colega e confidenciou-me que o Dr. Esteves de Oliveira lhe pedira que me contactasse e me apresentasse o convite dele para desempenhar as funções de Monitor.
Reflecti, mais tarde aceitei e, pouco depois, lá estava eu a dar aulas práticas de Direito Administrativo a duas turmas do 4.º ano de Direito, também no período pós-laboral.
E por lá estive durante dois anos lectivos, sem grandes preocupações com a remuneração devida.
- Bentinho, você está aqui a dar aulas e não lhe pagam! – disseram-me um dia os alunos, no decurso de uma aula nocturna.
- Não tem importância, eu gosto disto! – foi a minha resposta.
Completou-se o ano lectivo, estava eu a integrar o Júri nas provas orais finais, disseram-me para ir à Secretaria da Escola, quando aquilo acabasse.
Naturalmente fui e, para surpresa minha, tinham lá, para me entregar, um cheque de 50.000$00, equivalente à remuneração de todo aquele ano lectivo.
No entretanto, iniciei o estágio na Ordem dos Advogados e, com o trabalho diário na Caixa Geral de Depósitos, não me sobrava tempo para continuar a preparar e a ministrar as aulas de Direito Administrativo.
Mas este período de docência na Faculdade de Direito abriu-me, sem eu o esperar, o mercado jurídico em Direito Administrativo.
Nunca me faltaram Clientes, nem trabalho remunerado.
Quando Deus nos fecha uma “porta”, abre-nos um “portão”.
Louvado seja Deus!
António Bentinho, Advogado